sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Mundo ideal

Para poder dirigir, pelo menos legalmente, qualquer cidadão brasileiro precisa ter no mínimo dezoito anos, ser capaz de riscar duas linhas paralelas ao mesmo tempo, ser torturado psicologicamente por um instrutor de auto-escola que só escuta a Alfa FM , passar uma agradável manhã de sábado assistindo a cenas de acidentes de carro para aprender a dirigir civilizadamente e, por fim, ser reprovado três vezes na prova prática antes de conseguir a tão sonhada carta de motorista, documento mágico que atesta que, até a data x, seu portador é uma pessoa habilitada para conduzir um automóvel e pode, portanto, ser responsável por um volante.
Todo mundo sabe, entretanto, que o método é falho. Pessoas batem seus carros, cometem infrações, violam a lei, morrem e matam outras pessoas no trânsito todos os dias. E se, com tanta burocracia e fiscalização a coisa ainda assim degringola, imaginem o que acontece quando pessoas assumem responsabilidades muito maiores que um Fiat Uno sem, no entanto, contar com o treinamento necessário. Ter filhos, por exemplo. Sim, porque enquanto se tornar motorista é um processo longo, que dura meses e tem muitíssimas restrições, se tornar pai e mãe é algo que pode ser arranjado em minutos. Basta uma camisinha furada ou umas cervejas a mais. E, ao contrário da carta de motorista, um filho é algo que qualquer um pode ter. Qualquer um mesmo.
Essa idéia me vem à mente diante de certos alunos. Vejo aquelas crianças e me pergunto se os pais deles são capazes de riscar duas linhas paralelas ao mesmo tempo e chego à seguinte conclusão: tem gente que não tem a menor idéia do que fazer com um filho.
Antes de ser acusada de nazista, me defendo. O fato de considerar certas pessoas totalmente inaptas a procriar não tem nada a ver com elas serem pobres, pelo contrário. Meus piores monstrinhos são filhos de famílias de classe média. Também não me refiro a crianças mal-educadas ou rebeldes. Me refiro a crianças que estão sendo educadas por gente de um pensamento torto, esquisito, que não passaria nem pagando numa prova para atestar que fulano tem condições de ser pai ou mãe, se houvesse tal coisa.
Tem o garoto da quarta série que é fissurado em sexo. Leva playboy para a sala de aula, assiste filme pornô e insiste em me perguntar toda aula como se diz cu, buceta, pau em inglês. De onde veio a revista? Ele é que não comprou, só tem dez anos. Não posso deixar de imaginar que o pai, querendo logo se livrar do “problema” que seria ter um filho gay, resolveu apresentar as coisas para o menino e não perigar de ele se interessar pelas “outras coisas”. Ano que vem, no seu aniversáro de onze anos, ele provavelmente vai contar aos colegas que ganhou de presente uma noite no puteiro. Essa mesma turma da quarta série não admite ser chamada de criança. São, segundo sua própria definição, “pré pré adolescentes”. De onde tiraram esse termo? Só podem ter ouvido de algum adulto.
Tem a menina da terceira série que nunca andou de ônibus, nem de excursão. Ao ser questionada se ela não ia aos passeios da escola, respondeu que o pai não deixava, porque não queria que ela se misturasse com os meninos. E acaso ela estuda numa escola só de meninas? Parece aquela história do pai que faz a filha adolescente chegar em casa as dez da noite, como se motel não funcionasse antes desse horário. Ao comentar o caso com minha amiga Bruna, professora como eu e tão desbocada quanto, sua reação foi: “Essa daí vai virar uma puta de marca maior. Daquelas bem vagabundas.” Quer saber? Tomara que vire mesmo.
Tenho infinitas histórias como essas. Aos poucos vou contando. Só queria mesmo compartilhar meu delírio: num mundo ideal, qualquer pessoa que almejasse um filho teria que tirar licença, fazer curso e provar que é capaz de criar um cidadão mentalmente saudável. No meu mundo ideal, os psicanalistas não teriam emprego.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Tensão entre as partes

Suspiro dolorosamente. Depois de quatro horas com a segunda série, chego à conclusão de que, no fundo, a bruxa da história de João e Maria foi incompreendida. Afinal, a pobre mulher constrói a casa dos seus sonhos, toda de doces, para que um dia surjam dois pestinhas esfomeados e acabem com ela? Forno neles! E aposto que os irmãozinhos alemães seriam praticamente crianças de internato suiço perto dessas aqui, que nesse momento se ocupam colando no rosto umas das outras os adesivos que deveriam estar no livro. Procuro uma alternativa: mostro a eles meu material, para que vejam como ficou bonito com os adesivos coloridos todos nos lugares certos, mas é inútil. Grudar animais na testa dos colegas é obviamente muito mais divertido. Quando Matheus 2, o gordinho que vive de uniforme sujo, solta um berro agudo e contínuo porque Matheus 3 assoou o nariz em sua camiseta, chego a considerar a focinheira. Infelizmente, creio que métodos educacionais tão revolucionários ainda encontram certa resistência da parte de alguns pais conservadores. Me contento em dar um rolo de papel higiênico a Matheus 3 e mais uma cartela de adesivos a Matheus 2, que milagrosamente se cala e em seguinda enche o cabelo da garotinha da frente, que chorava copiosamente, com carinhas amarelas felizes. Prefiro acreditar que ele tentou alegrar a menininha. O papel higiênico se mostra uma tática igualmente genial: Me distraio por dois segundos separando uma briga e o rolo se torna artilharia pesada na guerra de cuspe que estourou no fundão. Já há baixa de cinco crianças quando consigo intervir, operação que demanda certa logística, uma vez que preciso me arrastar entre as carteiras para evitar ferimentos mais sérios advindos de uma bola de papel molhado bem colocada. Quando chego, quase ilesa (salvo uma tampa de caneta no olho), ao foco da batalha, sou cercada por uns vinte soldadinhos, todos com comunicados importantíssimos provenientes do QG:

    • Tropas inimigas às 10 horas!

    • Baixa na trincheira 8!

    • Soltei um pum!

    • O Lucas 5 cortou meu cabelo!

    • O Caio está comendo cola!

    • A Talita não sabe amarrar o sapato!

Me pergunto quem foi que disse que essas crianças têm que ir à escola? Aqui definitivamente não é o lugar delas. Deveriam estar no circo,no zoológico, ou no exército, locais que certamente contam com profissionais mais qualificados para lidar com situações desse tipo.

    • Bem, é para isso que elas vão à escola.- Argumentaria alguém.- Para se civilizar.

Pobre desavisado! Ignora o fato de que não há lugar menos indicado para ensinar a um pequeno a arte de viver em sociedade. A sala de aula é o próprio Vietnã, ou pior: Ambiente opressor, desconhecido, cheio de criaturas que surgem do nada dispostas a se degladiar por, sei lá, uma caneta que brilha no escuro.

Ouço um palavrão. Enquanto me ocupo limpando as crianças atingidas na terrível batalha de cuspe, um tênis passa voando a uma distância perigosa da minha cabeça, acertando em cheio a caixa de duzentos lápis de cor da menina da primeira carteira. Esta começa a chorar convulsivamente enquanto, no fundão, alguém grita:

    • Tia, o Thomas falou “bunda”!

Diante da menção da palavra proibida a sala vem abaixo. Os gritos histéricos provenientes de manifestações de apoio ou repúdio a tão desprezível vocábulo tomam conta do ambiente, e quem passa do lado de fora imagina que uma centena de rebeldes se apossam da classe nesse momento. “Bunda”! Isso é o melhor que você pode fazer? Conheci menininhas de primeira série capazes de proferir palavrões que fariam corar um caminhoneiro!

Competir com os gritos é inútil. Eles são trinta e dois e eu, apenas uma, exausta, descabelada, prometendo sair dali direto para uma clínica de esterelização. Mas como não pensei nisso antes? A psicologia inversa é a solução. Sento me atrás da mesa e aguardo, em silêncio, que eles prestem atenção em mim. Afinal de contas os pequeninos são razoáveis. Não estou tratando com insurgentes iraquianos, mas com crianças espertas e absolutamente capazes de compreender que, em determinado momento, terão que se calar e acatar minhas ordens sem dar um pio. O barulho aos poucos vai se dissipando, acendendo em mim a esperança de que, com sorte, em mais duas horas conseguirei passar a lição de casa.

-Tia, o Thomas falou “bosta”!

Monstrinhos! Em três segundos o quase silêncio que levou uma hora para ser estabelecido se retira como uma tropa derrotada e me abandona no meio da trincheira tomada, ferida, indefesa e a mercê de trinta e duas almas que, tão jovens, não têm mais salvação. Agora entendo que as janelas tipo basculante não são apenas fruto de uma arquitetura sacana que pretende matar professores e alunos sufocados pela falta de ventilação. São também uma maneira eficiente de impedir defenestrações, voluntárias ou não, de mestres e pupilos. Estou a ponto de me render, quando um som que só pode ter vindo dos céus anuncia o cessar-fogo e reestabele em mim a fé – o sinal que indica o fim da aula, e que traz com ele as tropas aliadas: As inspetoras de corredor. Os pestinhas se enfileiram como prisioneiros de guerra para seguir as abençoadas mulheres que os manterão afastados de mim pelo menos até amanhã. No caminho um deles, como num tratado de paz, me dá um bombom. Não são uns anjos esses meus alunos?